Maria Carmen Baldomir Cabanas
united p.c. Verlag (2023)
História de terror psicológico, Cordura descreve um ambiente de angústia e horror que mantém a intriga até ao último momento. Para além de um clímax quase constante (como nas boas cenas do cinema do género), provocado pela persecução a que são submetidos Maria Luísa e Henrique, personagens protagonistas, há uma segunda linha de tensão desenvolvida na técnica com que se relata a história: do princípio ao fim temos que nos esforçar para reconhecermos as vozes dos diálogos e monólogos interiores. As conversas são o modo principal de irmos desenguedelhando o nó, mas, atenção! Em nenhum momento temos uma voz narradora que nos diga quem é quem. A desorientação que provoca o tentar identificar qual é o indivíduo que está a falar (ou pensar para si) gera uma angústia adicional à própria história da fugida, eixo central do romance. E eis a complexidade da trama maiormente. O número de personagens secundárias vai in crescendo. E a interação entre vozes, também. Até acharmos situações em que aparecem três, quatro, cinco pessoas mesmo, sem voz narradora nenhuma que nos ajude a identificá-las. Como únicas marcas que contribuem parcialmente a enxergarmos sequer umas mínimas diferenciações (mas não distinguirmos individualmente a personagem) os monólogos interiores aparecem entre aspas e as três linhas narrativas que estruturam o romance têm cada uma um tipo de letra que nos permite orientar-nos um pouco melhor nos múltiplos saltos temporais em que vai evoluindo a história: a rapaza e o rapaz que fogem (tempo passado da adolescência), os/as vigiantes que os perseguem (tempo passado também com salto ao presente) e o presente em que confluem as distintas vozes.
Custa em excesso, porém, mesmo no final, identificar e relacionar as personagens. Nomes que se repetem, relações pessoais que mudam, várias gerações que convergem: um gráfico a modo de epílogo em que aparecesse com claridade quem é quem e como se relacionam entre si poderia contribuir a uma melhor compreensão do desenlace. Não influiria na intriga e facilitaria enormemente a compreensão e a reflexão sobre a mensagem última da história. Se calhar estima-se conveniente adicioná-lo numa nova edição que corrija também erros tipográficos e linguísticos (desvios inecessários e mesmo erros ortográficos, ainda que não excessivamente numerosos, sim suficientemente abundantes como para aconselharem uma revisão).
Porque como a boa literatura alternativa, para além de atender as demandas de quem goste dum género pouco praticado e afastado dos cânones, que tem como intenção primeira simplesmente entreter, Cordura desvela, denúncia, adverte de vários perigos: o duma sociedade onde a corrupção pode penetrar em âmbitos que deveriam ser inquebrantáveis; a normalização da crueldade e a reação desproporcionada de quem se sente impune atuando desde postos de responsabilidade; a dificuldade para mudar estruturas de poder que são herdadas; a exclusão física e no mínimo psicológica de quem chega a conhecer a verdade, mas nada pode fazer para mudá-la; a fugida vital despois do trauma, pela adição ou na tentativa de esquecimento que leva à ruptura com a realidade, demasiado horrível como para ser assumida. Em lugar da crueldade a resposta deveria ter sido a compreensão e a tenrura para com quem, aliás, mesmo na mais absoluta adversidade, conserva e segue a mover-se por esses sentimentos. Mas eis o género do terror que nos faz-nos mais cépticos ao nos expor aos nossos medos. E se aquilo que mais queremos for um engano? A imaginação do improvável, o exagero, a ficção, pode provocar certa perda da ingenuidade em que estamos comodamente instalados, mas também nos permite valorar um pouco melhor tudo quanto de bom há nessas vidas que por vezes lhe parecem rotineiras às/aos Leopolds Bloom que sobrevivem e ocasionalmente mesmo se enfrentam (e ganham!) à máquina de fazer Harry Hallers do nosso tempo.